sexta-feira, 25 de março de 2011

Hoje, cinquenta anos mais tarde, a realidade só veio confirmar o alcance profético das afirmações de Hubczejak - a um nível que ele próprio não teria suspeitado. Ainda restam alguns humanos da antiga raça, em particular nas regiões que estiveram muito tempo submetidas à influência das doutrinas religiosas tradicionais. A sua taxa de reprodução, contudo, não deixa de diminuir de ano para ano e a extinção parece inevitável. Contrariamente às previsões pessimistas, esta extinção faz-se calmamente, apesar de alguns actos de violência isolados e em número cada vez menor. Não podemos mesmo deixar de nos surpreender ao ver a tranquilidade, a resignação e mesmo o secreto alívio com que os humanos concordaram com o seu próprio desaparecimento.
Rompemos o laço filial que nos ligava à humanidade e passámos a viver. Para que toda a gente possa ver, vivemos felizes. O que era inultrapassável para os homens, as forças negativas do egoísmo, da crueldade e da cólera, já não existe para nós. Pode dizer-se que vivemos uma vida completamente diferente. A ciência e a arte continuam a existir na nossa sociedade, mas a procura da Verdade e do Belo, menos estimulada pelo aguilhão da vaidade pessoal, adquiriu um carácter menos urgente. Para os humanos da antiga raça, o nosso mundo parece o paraíso. Por vezes acontece que cheguemos a qualificar-nos a nós próprios - de uma forma, pode dizer-se, um pouco brincalhona - como «deuses», essa palavra tão cheia de ecos para os humanos.

Michel Houellebecq, in 'As Partículas Elementares'

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